O entrelaçamento entre memória e identidade é a temática deste Dossiê e suscita reflexões sobre personagens inseridas em contextos literários representativos da lusofonia contemporânea. Sabemos, entretanto, que desde os gregos, a Memória é um construto coletivo, unindo deuses, semideuses e humanos. Passados muitos séculos, precisamente na Idade Média, Santo Agostinho, em Confissões, X, 14, nomeou a Memória de “receptáculo dos conhecimentos”, ou ainda em sua expressão “ventre da alma”. A passagem dos milênios não apagou a importância da Memória para humanidade, antes a tornou uma figura central na história da sociologia, como nos assegura o sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877–1945) em sua obra seminal, Os Quadros Sociais da Memória (1925). Essa obra de Halbwachs está intrinsecamente conectada à memória coletiva, moldada e influenciada pelos contextos sociais aos quais pertencemos. Isso significa que nossas experiências e memórias pessoais não são apenas produtos individuais, mas complexas interações no tocante às questões de identidade.
Em se tratando da concepção de identidade dos sujeitos na contemporaneidade, suas características perpassam por sujeitos que não têm uma identidade fixa, essencial ou permanente. Em razão disso, a identidade ou as identidades, tal qual a Memória, são formadas e transformadas constantemente, sofrendo a influência dos diferentes sistemas culturais de que tomam parte. Inserida nesse contexto, a visão do sujeito identitário assume contornos históricos e não biológicos, processo que soa perturbador, visto possuir um caráter de incerteza e imprevisibilidade resultante de deslocamentos do passado. Logo, abrem-se possibilidades de desenvolvimento de novos sujeitos identitários em cadeia sucessiva. Tal percepção identitária vai ao encontro da visão teórica de Zygmunt Bauman (1925 – 2017) publicada em 2005 no livro Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi: “à medida que nos deparamos com as incertezas e as inseguranças da modernidade líquida, nossas identidades sociais, culturais, profissionais, religiosas e sexuais sofrem um processo contínuo de transformação, que vai do perene ao transitório, com todas as angústias que tal situação suscita.” A partir desta afirmação de Bauman, dir-se-á que somente as memórias íntimas ou coletivas mantêm unido o processo de transformação pelo qual passam os sujeitos sociais, o que permite que suas identidades não se esfacelem diante das incertezas e das inseguranças proporcionadas pela experiência moderna.
Esses teóricos constituem apenas uma amostra dos diversos pensadores representativos da memória e identidade. A título de exemplo, mencionaremos outros estudiosos que desenvolveram teorias semelhantes. Paul Ricœur (1913 – 2005), filósofo francês que abordou temas de memória, identidade e narrativa e Julia Kristeva, teórica da literatura e psicanalista que explorou a relação entre identidade, linguagem e subjetividade, oferecendo visões valiosas para a compreensão da memória e da identidade na literatura. Seguindo esta mesma linha teórica, citamos Michel Foucault (1926 – 1984), filósofo francês cujas teorias podem oferecer uma abordagem crítica para a análise das relações entre memória, identidade; além dele, Aleida Assmann, teórica alemã que se dedica ao estudo da cultura da memória, destacando a importância da memória cultural na formação da identidade individual e coletiva.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Campinas-SP: Zahar Editora, 2021.
HALBWACHS, Maurice Os Quadros Sociais da Memória. Joinville – SC: Clube de Autores, 2023.