Chamada para publicação ed. 43 (1-2025) - DOSSIÊ: Passaram ainda além... dos estereótipos: questões de gênero na obra camoniana

No momento em que evocamos os quinhentos anos do nascimento de Luís Vaz de Camões, mesmo sem saber a data exata em que o Poeta veio ao mundo, pretende-se estimular o interesse pela sua poesia, colocando o foco na discussão de temas que marcam a atualidade, como as questões de gênero.
Importa salientar que o “peito ilustre lusitano” cantado n’ Os Lusíadas inclui também o “peito feminil”, através da pintura de retratos femininos que desafiam os ditames normativos das convenções sociais e dão sinais de uma tentativa de empoderamento. Recordemos a intervenção política da “fermosíssima Maria”, a rejeição que a ninfa Tétis impõe ao gigante Adaastor, o poder da deusa Giganteia que difunde globalmente a gesta portuguesa, a superioridade intelectual da deusa Tétis, ou a repreensão da ninfa a Bóreas no episódio da Tempestade (Lus. V, 89, 4-8). Cumpre lembrar igualmente os jogos de sedução encenados na Ilha dos Amores, de modo a evitar o assédio e a violação, privilegiando uma perspetiva sobre a vivência amorosa que recorre à emulação de mitologemas, imagens e figuras antigas. Em que medida contribui este cenário para defender uma intervenção cívica no sentido de reconhecer os direitos sexuais da mulher no século XVI?
Na poesia lírica, Camões soube dialogar com a tradição petrarquista, explorando a combinação de atributos herdados dos modelos peninsulares e dos códigos classicizantes no âmbito da imitatio renascentista, mas conseguindo fugir tanto à deificação da mulher que implica a sua redutora desumanização quanto ao esquecimento da tópica bucólica do amor entre pastores e pastoras. E não deixou de cantar, ainda que de um ponto de vista colonialista, a beleza de uma mulher negra e escrava nas endechas a Bárbora. A mulher de muitos amantes é figurada como Circe, fera humana e loba. No teatro, Camões soube dar protagonismo a figuras femininas pertencentes a diversos estamentos da sociedade de corte. Nas cartas em prosa, a prostituta de Lisboa ou das Índias é alvo da sátira camoniana. Que memória persiste dessas figuras femininas que o poema épico libertou da “lei da morte”? Como foram representadas pelas artes e pela historiografia?
O amor heterossexual inspirou a maior parte da produção poética de Luís Vaz, mas também o amor entre iguais foi encenado no seu drama pastoril e satirizado no Convite que fez a certos fidalgos em Goa. Heliogábalo, Sardanapalo, Nero, Jacinto, os mitos de Apolo, Orfeu despedaçado, Hércules, entre outros, são personagens e topoi homoeróticos da História Antiga e da Mitologia citados por Camões. Que papel desempenham na sua obra?
Procurando fomentar a discussão das questões de gênero na obra de Camões, de modo a resgatar o interesse deste valioso contributo para a história cultural do século XVI, este volume tem como objetivo aprofundar o estudo da mentalidade que embasou a fortuna crítica e/ou poética dessas temáticas, seja na atualidade, seja em outros períodos históricos, de acordo com os valores e desejos dominantes. Visa-se, assim, lançar nova luz sobre aspetos menos explorados, sugerindo-se, entre outros, as formas de representação de figuras femininas ligadas à vida e à obra do autor d’ Os Lusíadas; a imitação poética da pastorícia homoerótica renascentista na relação preceptor/pupilo e no ambiente da corte; a expressão da sexualidade e das conceções eróticas quinhentistas. Apela-se, em particular, à reflexão sobre as reinterpretações das mulheres camonianas marginalizadas (prostitutas, escravas, serranas...) nas literaturas e nas culturas de língua portuguesa, nomeadamente nos testemunhos da tradição oral.
Convidamos, assim, as investigadoras e os investigadores a apresentarem propostas de artigo neste âmbito, de modo a promover o diálogo interdisciplinar, com base na pluralidade de abordagens teóricas e áreas científicas (Literatura, História, Estudos Culturais, Sociologia, História da Arte, Estudos Feministas, Estudos Homoeróticos, Direito, História da Ciência, Música, Dança, Geografia etc.).